20 de novembro de 2023

GERANDO UMA CAPA E SUAS INFLUÊNCIAS

             Hoje eu trago para vocês, uma sequência de estudos para a capa de As tentações de Santo Antão, trabalho meu lançado em maio último pela editora Devir. Aqui no meu estimado blog tem uma postagem comentando sobre este trabalho. O processo de criação de uma capa sempre envolve muita transpiração e inspiração e dependendo leva-se um bom tempo até chegar na ideia definitiva. Às vezes não, como é o caso deste livro. Com As tentações de Santo Antão, a ideia veio praticamente antes de iniciar os desenhos da hq em si e com aprovação da própria editora. Só faltou fazer alguns ajustes, mas a ideia era basicamente uma só.



             Quem razoavelmente conhece meu trabalho, sabe da tremenda influência que tenho na estética dos anos 60/70, tanto na moda, quanto no cinema, principalmente as produções europeias, mais especialmente italianas e francesas deste período. A estética de filmes do cineasta Pier Paolo Pasolini, ou dos estrelados pela brasileira Florinda Bolkan em terras italianas como Flavia, la monaca musulmana, por exemplo, foram fundamentais para o visual da trilogia Yeshuah e agora em As tentações de Santo Antão.  A imagem do homem em sua angústia perante a expressão viva à sua frente do amor, da paixão, do carnal,  e a dor do conflito do sagrado com o profano em si, permeia toda a história. A intenção desde o início era que a capa trouxesse isso, por mais que pudesse parecer se tratar tão somente de uma obra de cunho erótico, o jogo com o leitor, ou melhor, o convite era esse. Algo como, de certa forma, é o que acontece com o protagonista desta trama. 

A capa em questão e suas influências, por mais que numa primeira ou até mesmo segunda leitura, passem desapercebidas pelos olhos de leitores que desconheçam ou tiveram pouco contato com esse tipo de cinema, foi gerada dentro deste clima, convidando inclusive este leitor a adentrar neste universo proposto que traz muito mais que a capa apresenta.


As tentações de Santo Antão você pode adquirir através desse link 







26 de setembro de 2023

ADAPTANDO UM CLÁSSICO NACIONAL

  




Um exercício de criatividade que a mim sempre foi muito interessante é o de poder trabalhar com ideias pré-concebidas ou propostas de temas, acho até que essas duas possibilidades de alguma forma se assemelham. Assim foi com hq’s produzidas para várias revistas como Café Espacial, Clássicos Revisitados, Mestres do Terror e claro, Ménage, gibi produzido de forma independente com os amigos e tremendos artistas Marcatti e Germana Viana. Breve prometo falar sobre esta publicação. A coisa toda merece.

            Tenho feito ao longo dos anos adaptações de vários clássicos da literatura brasileira e mundial, um dos mais conhecidos e vendidos é a versão que fiz de O auto da barca do inferno do Gil Vicente, lançada pela Editora Peirópolis, que aqui no meu blog há mais de uma postagem contando alguns passos do processo. A ideia de trabalhar sobre um texto clássico é por si só desafiadora e torna-se mais ainda quando é preciso colocar uma marca pessoal nesta adaptação mesmo que honrando absolutamente a história, o texto original. Há alguns poucos anos atrás, a editora Renata da Ateliê da Escrita procurou-me interessada em que eu produzisse uma adaptação de um clássico da literatura brasileira para os quadrinhos. Um delicioso bate-papo sobrevoando as infindáveis obras do panteão de autores nacionais acabou aterrissando em um convite à princípio para mim inusitado que seria trazer para a narrativa sequenciada dos quadrinhos a obra Iracema de José de Alencar. E neste primeiríssimo instante a minha

cabeça pensou e acredito num segundo depois externou a certa marra que este livro trouxe consigo, principalmente entre os jovens de vários períodos, o  de se tratar de uma leitura muito difícil, rebuscada, claro pelo período em que foi escrita e ligada, o movimento literário romântico, onde esta era uma das características fortes. Mas, profissionalmente a proposta foi aceita e como sempre faço, busco achar no trabalho encomendado um ou mais pontos onde a minha parte autoral, criativa, possa se encaixar para que a obra saia com toda honestidade possível.

           Li Iracema quando tinha meus quinze anos, um pouco mais, um pouco menos, talvez, claro dentro de trabalhos escolares e coisas desse tipo. Nessa releitura para a produção da hq e principalmente feita com olhos de alguém que já labuta há muitos anos na contação de histórias desenhadas e, creio eu, com a sensibilidade um pouco mais aguçada, toda a história da índia Iracema, filha do pajé de sua tribo e seu amor pelo soldado português Martim, veio de uma fantástica forma nova e até certo ponto inusitada cheia de possibilidades narrativas para sua adaptação. Isso obviamente trouxe a euforia do ineditismo de uma criação pronta para ser feita. Uma nova leitura da obra foi feita para assimilar melhor a história e trazer mais possibilidades, uma pequena pesquisa tanto na escrita como no audiovisual sobre a obra e seu criador e pronto, estava tudo formatado. Em reunião com a editora trouxe alguns apontamentos sobre a obra, sempre pensando na adaptação e para todas as possibilidades de leitores. Isso é fundamental: pensar sempre em quem vai ler, pois é para eles que criamos. Haviam alguns entendimentos curiosíssimos na história de Iracema, como a questão dela ser filha do xamã da tribo e justamente por isso  ser a protetora da bebida Jurema, um chá que tem uma certa semelhança ao Ayahuasca (com certas diferenças das plantas usadas em suas preparações) mas com resultados semelhantes em seu consumo, ou mesmo a diferença do tipo das tribos mostradas na história: uma, a da protagonista, mais mata adentro e outra a rival, mais próxima ao litoral. Lembrando que a história acontece num Ceará nos primeiros anos da descoberta do Brasil. Enfim, diversos pontos, alguns importantes, outros nem tanto assim, mas claro, com sua significância. As cores deste trabalho ficaram nas mãos de Flavio Soares.

            Um ponto fundamental para que o resultado da obra alcance um nível beirando a perfeição, se é que se pode dizer assim, é a confiança da casa que te contrata. Essa confiança permite uma liberdade por parte do autor/adaptador respeitando os pontos importantes à editora, porém prezando a reflexão e o modo que quer contar essa adaptação. 


Iracema é uma história de amor, da inocência de um amor puro e verdadeiro que a tudo sacrifica em nome dele, no caso Martim, o bravo soldado português, também embalado por esse amor dócil, mas sem a maturidade e perfeição que sua amada traz e lhe propõe criarem juntos. Um tema delicado e bonito, embalado por uma grande aventura num Brasil ainda selvagem. O final com a célebre frase “Na Terra tudo passa”, mostra a compreensão da vida e dos rumos que as coisas se seguiram e que assim deveria ser. Uma máxima simples, profunda e perfeita, que confesso ter sido o ponto central, a estrela-guia que me guiou nesta adaptação.



Quem se interessar em conhecer esTe trabalho, basta conferir no site da editora Ateliê da Escrita.

            

            


I

27 de agosto de 2023

PENSANDO NA CORES


   Sou daltônico. Da categoria dos que confunde, troca muitas cores: verde, marrom, azul, rosa, cinza… O caso de ilustradores, desenhistas terem essa deficiência, se é que posso cometer o abuso de chamar disso, não é tão incomum no meio das artes e mais especificamente das hq’s. Um exemplo disso é britânico John Byrne, grande mestre da nona arte, responsável por grandes clássicos da Marvel.  O fato é que ao longo de minha carreira nos quadrinhos, especificamente falando, nunca me preocupei com a questão das cores nos meus desenhos. Primeiramente porque durante muitos anos em que tive parceria com o artista Omar Viñole no Estúdio Banda Desenhada, essa responsabilidade, a colorização, cabia a ele e, diga-se de passagem, magnificamente bem. Embora conversássemos bastante sobre a paleta de cores a ser usada em determinada história, ambientando, dando o clima, sempre expunha minhas intenções, porém deixando a realização e como chegar nessa paleta de cores desejada a ele. E esse método se estendeu posteriormente a outros coloristas com quem trabalhei como Flávio Soares (Iracema) e Thaynan Lana ( O vampiro, Aventureiros do Faz de Conta).

Porém em meu mais recente trabalho lançado, A prisioneira, com roteiro do mestre R.F. Lucchetti, para coleção Escafandro da editora Ultimato do Bacon, resolvi mudar um pouco o foco, digamos assim. Já havia colorizado outros quadrinhos meus como Os faroleiros e outros contos de Monteiro Lobato e Navio Negreiro e outros cantos de Castro Alves, ambos lançados pela Editora do Brasil, porém nesses casos a colorização basicamente funcionou como o elemento a que se propunha. Em A prisioneira, a ideia de pensar uma cor e executá-la d’uma maneira própria veio justamente após a leitura do conto do Lucchetti, um mistério que vai do começo ao fim brincando com as expectativas do leitor. Como sou um profundo admirador do cinema europeu B dos anos 60 e 70, assim como do cinema brasileiro desse mesmo período e venho criando um universo estético em minhas hq’s baseado nesse clima cinematográfico(futuramente falarei disso aqui), resolvi que a cor teria uma menção dos clássicos filmes de suspense italianos desse mesmo período, o gênero giallo, tão popularmente difundido por cineastas como Mario Bava, Lucio Fulci e Dario Argento, esse último responsável, talvez, por um clássico absoluto e mais conhecido desse gênero, Suspíria. A ideia de trabalhar com cores fortes, quase caindo no

monocromático em alguns momentos e, principalmente sem tanta preocupação com uma lógica de cores, explico, azul - céu, marrom - tom de pele, tronco de árvore, verde-mata… compreenderam? Tudo isso veio formatado e deliciosamente aceito para esse trabalho, o que definitivamente trouxe luz aos meus quadrinhos, me proporcionando curiosamente a enxergar uma cor pessoal aos meus desenhos, e que me pareceu ter sido aprovado pelos leitores.


              Claro não me considero de forma alguma um colorista, comparando a tantos craques das cores que se tem por aí, incluindo muitos brasileiros, porém, posso me considerar que dou cor aos meus desenhos e que creio conseguir fundir a ideia: a estética pensada (a conversa dos anos 60/70 que voltarei a falar reiterando), meu tipo de desenho e história, quer escrita por mim e por esses grandes parceiros.



Quem se interessou por A prisioneira, é só ir no site da editora Ultimato do Bacon

Para entender melhor sobre o gênero de cinema giallo é conferir neste link

15 de agosto de 2023

QUANDO UMA CAPA FEZ A CABEÇA DE UM JOVEM FUTURO ARTISTA


            Dias atrás cruzei com essa  imagem de uma capa das antológicas publicações de terror brasileiro produzidas nos anos sessenta e setenta pela Editora Taika, casa editorial brasileira responsável por muitos títulos de quadrinhos brasileiros, como faroeste, guerra, humor, mas claro, o terror era o sucesso da Taika e o grande mestre ítalo-brasileiro Nico Rosso uma das grandes estrelas da editora. Essa capa em especial é de sua autoria, nem precisaria dizer, pois dá para perceber claramente nessa icônica assinatura. 

            Mas o motivo de comentar sobre essa capa é justamente por ser ela o gatilho como se está em moda dizer hoje em dia,  para uma nova percepção para o que se ler e principalmente para o que se criar em termos de quadrinhos. Isso digo de um menino lá no distantes anos setenta, consumidor irreparável desses títulos da editora Taika e que já fazia suas hq's. Essa ilustração mexeu profundamente com aquele muito jovem Laudo, claro pela sua dose excessiva de erotismo, mas pelo clima aí mostrado, o rosto sombrio e ameaçador, porém ao mesmo tempo enigmático do Drácula.  Lembro, se é que posso ter uma lembrança absoluta de algo que deve ter aproximadamente uns cinquenta anos, que quando vi essa capa, esse gibi nas bancas de São Vicente (cidade que nasci e morei até final dos anos setenta) ter tido esse tremendo impacto mas também ter demorado algum tempo para tomar coragem e comprar especificamente esta capa,  temendo bronca, puxões de orelhas do meu pai. Um adendo, não que já não comprasse outras publicações de terror na época, mas não com essa força, digamos assim. Pelo quase nada que me recordo na sequência, meu pai viu essa capa, ou teria sido minha mãe?... lembro da bronca... ela houve... mas parece que no final a coisa acabou seguindo e o gibi ficou comigo sem problemas... pois o material interno, mesmo sendo terror era mais "ameno", posso dizer.

Arte fantástica deste mestre absoluto que foi e é Nico Rosso

             Nico Rosso, como disse, foi uma das grande estrelas dessas publicações da Taika, me influenciou de uma maneira única, e claro, principalmente pelo seu jeito de desenhar mulheres.  À partir daquele período comecei a comprar outras publicações de outras casas editoriais com arte deste mestre, como o caso da coleção Clássicos da Literatura Juvenil,  da editora Abril, trazendo, como o próprio título dizia, obras máximas da literatura mundial ricamente ilustradas por grandes artistas nacionais e Nico Rosso frequentemente trazia suas artes para maravilhar essa coleção. 
            Claro, não foi Disney, nem Maurício de Souza ou coisas assim que fizeram a cabeça daquele menino futuro desenhista... teve super-heróis... teve muito humor (Recruta Zero, fui e ainda sou fã) mas teve muito Nico Rosso e suas vampiras e monstros estranhos...
            Mas essa conversa que agora trago para vocês é para de certa forma deixar registrado essa história peculiar sobre um gibi para adultos, que então e como sempre foi, muitos jovens e moleques liam, que marcou-me de uma maneira única e ajudou de maneira integral à moldar meu trabalho, lançando sua primeira semente que seria depurada e entendida com o passar dos anos e talvez ainda esteja sendo entendida e depurada, nem só por esse primeiro conteúdo que comentei incialmente, mas o tanto mais de coisas que pode trazer em si enriquecendo o trabalho e buscando sempre sua cara.


Uma das raras fotos de Nico Rosso



 


30 de julho de 2023

SEMPRE A POESIA!

            Releitura de sábado a noite. Se aprofundando mais nesse trabalho incrível encabeçado pelo Sergio Chaves e Lidia Basoli há tantos anos. Tanta gente talentosíssima participando... Mariana Waechter, assinando a capa, Jana Lauxen, Maria Clara Carneiro, Talita Grass, assinando textos, quadrinhos de gente muito, muito batuta, boa, Alex Sander, Henrique Magalhães, Lielson Zeni, Ebbios, Rosana Moro e Liber Paz, e muitos outros tantos. Gente de altíssimo gabarito. Mas, a mim, a síntese da edição e com certeza uma síntese para nossa alma humana (independente do gênero) está absoluta no poema "Final girl" de Marcia Heloísa
           Obrigado Marcia, por esse vento forte e bonito de fé. Vai um trecho final...

escreva
para o desagrado
dos ferozes
e pelo resguardo
dos mansos

escreva
a despeito da certeza

em respeito aos mortos
em vinho aos mestres

escreva

para ser dona do desfecho

e não vítima
da vida                                                      


11 de abril de 2023

AS TENTAÇÕES DE TODOS NÓS

Capa do novo livro

           Durante a primeira década dos anos dois mil, estava completamente absorvido na produção de Yeshuah que viria a ser publicado inicialmente em três volumes, sendo que os dois  primeiros foram lançados justamente no final dessa primeira década. Durante a produção dessa hq, roteiro e  desenhos, houve uma intensa pesquisa de minha parte para conhecer o máximo possível sobre a figura de Jesus e assim poder trabalhar dentro de um outro campo em seu enredo e foi justamente nessas imensas pilhas de livros que estudei que  deparei com a história... ou o mito, enfim, de Santo Antão, por acaso. Não me recordo agora mas também não importa tanto, em meio a livros sobre o cristianismo e sua história, estava lá em alguma citação provavelmente sobre o egípcio que durante sessenta anos de sua vida viveu no deserto em busca de um grau elevado de espiritualidade. Antão é tido como o primeiro asceta do cristianismo (segundo o dicionário: antes da instituição dos mosteiros, devoto dedicado a orações, privações e mortificações, sem ter pronunciado votos.) e nessa sua jornada mística e espiritual teve um confronto constante com Satanás que tinha o intuito de vencê-lo em seu objetivo e para isso o anjo caído fez uso de todas as armas possíveis, entre elas a luxúria, o sexo, os desejos da carne. Ao termino desse primeiro contato com a história do santo vi que em sua jornada e enfrentamento estava muita coisa que poderia representar, criar metáforas sobre buscas que sabia que existiam em meus quadrinhos, mesmo até nos mais descompromissados: o sagrado e o profano.

            Nesse mesmo período da produção de Yeshuah, paralelamente produzia a série erótica da personagem Tianinha, onde vale dizer  durou nove anos de publicação mensal dentro da revista masculina Total. A personagem loira que durante um certo período ganhou grande fama na internet, que então estava começando a criar vida muito longe do que é atualmente, fama essa que alavancou sua popularidade nas bancas e com os leitores, trazendo vez ou outra um número exponencial de vendas. Tianinha trazia muito do meu pensar sobre sexo: da relação entre pessoas, do que é permitido e principalmente nesse ato que à princípio praticado por duas pessoas, onde todos se tornam iguais. Mas, ao mesmo tempo também realizava uma profunda busca espiritual na hq e dentro de mim em Yeshuah. Foi nesse mesmo período que fiz meus primeiros trabalhos xamânicos, experimentando a expansão da consciência que foram fundamentais, divisores de água, para minha vida e para meu trabalho nos quadrinhos. 

         Com essas duas compensações na balança, de novo, o sagrado e o profano, vamos tratar assim, que quando tomei conhecimento da história de Antão, como disse, vi nele a metáfora a se trabalhar para entender o que é isso dentro do que crio... por que o sexo e o prazer? por que a busca e o entender Deus ou o que pode se entender como? e principalmente o equilíbrio da fé. A fé que antes de qualquer religião é um estado primordial para nossa existência terrena.

           

A tentação de Santo Antão por Salvador Rosa
          Claro que precisaria me aprofundar na história do santo, assim como vinha fazendo em Yeshuah. Li sua biografia "oficial", escrita por Santo Atanásio, arcebispo de Alexandria e contemporâneo de Antão, além do maravilhoso texto de Gustave Flaubert de livre inspiração As tentações de Santo Antão, esse texto por sinal, foi minha grande fonte inspiradora para compor o meu roteiro, além de estudar  quase toda iconografia, onde talvez Bosch tenha sido o artista que mais representou a história do santo e suas tentações no deserto.

            Ainda hoje sua história é muito forte, muito inspiradora: entre tantos simbolismos e interpretações possíveis é o homem no centro da famigerada disputa entre céu e inferno. A briga pela equação da balança e foi nesses pequenos e ao mesmo tempo grandes vislumbres de possibilidades que fui moldando a minha história. O meu Antão não poderia ser alicerçado em um personagem histórico, pois muitíssimo pouco se tem e a própria biografia de Santo Atanásio pouco fornece apesar de abranger muito de sua vida religiosa. Busquei então criar dentro dos pontos principais de sua história... ou mito, o homem, o ser humano que confronta seus erros, principalmente enganos perante Deus e perante o diabo, que aqui, mais do que um ser maligno, disposto a tirá-lo do caminho sagrado, quer traze-lo para verdadeira trilha divina que é simplesmente viver a vida, ou a vida à vida, como é dito em vários momentos da história.  Até onde o egoísmo e a cegueira em nome do que julgamos ser o absolutamente correto não prejudica quem está em nosso entorno e principalmente a quem nos ama? O que realmente é certo? Onde está Deus... ou nossa fé... em tudo isso? Por que a minha crença é a verdadeira e a sua não? E tantas outras questões que não saem de nosso DNA.

            É claro que o livro não traz resposta alguma, mas procurei não deixar dúvidas. Eu mesmo sigo dentro de minhas dualidades, que vale dizer, em momento algum quis excluir um desses lados.  Acredito que mais harmoniosos agora, quem sabe. Talvez e assim digo, talvez, busquei traduzir tudo a uma denominador comum, onde nesse estado não existe dualidade. O que seria? Mais do que não querer entregar o final da hq, o mais provável é quero deixar para vocês, pois é uma hq onde conto uma história, mais a conclusão sempre é do leitor. Para essa busca dentro do deserto pessoal onde conduzo o leitor desde a primeira página, a hq traz um ritmo lento, contemplativo com muitas, muitas páginas totalmente absorvidas por desertos, montanhas, céu, noite... natureza, que apenas observa o drama que nela se estabelece e irá acontecer. E o deserto pode ser o leitor: observador e estado interior a ser preenchido.

            As tentações de Santo Antão será lançado em breve pela editora Devir, velha parceira em outros trabalhos tão preciosos na minha carreira como Histórias do Clube da Esquina, Cadernos de Viagem e claro, Yeshuah. Na internet você vai encontrar muita coisa sobre Antão, vale conhecer, e entender como disse para trás o quanto ele nos representa em nossa essência humana, conflitante, sagrada, profana e por tudo isso, fazendo parte de Deus. 

          Mais uma vez uma história foi contada, escrita e desenhada e breve servida. E a vida de todos segue adiante.

         

O deserto: observador do confronto de Antão



 

17 de março de 2023

FAZENDO DE CONTA E APRENDENDO

 

   

            Alguns projetos chegam em um primeiro momento causando uma certa insegurança pelo fato da proposta em si trazer algo novo. Cabe a escolha de aceitar ou meramente recusar, mas é sempre sabido que em alguns casos, óbvio, é enriquecedor aceitar essa nova experiência. Há tantos anos produzindo quadrinhos e pouquíssimas vezes, mas pouquíssimas mesmo, trabalhei  direcionado para o público infantil e as ocasiões em que isso aconteceu sempre foi com textos escritos por outros, ou seja, fui só o ilustrador.  

           Em 2022 a editora Ateliê da Escrita,  que é daquelas casas onde além da questão profissional é uma parceira deliciosa e que incialmente  havia produzido para o pessoal a  adaptação de Iracema, clássico do romantismo brasileiro escrito por José de Alencar , me trouxe a proposta de criar um álbum direcionado ao público infantil e mais especificamente, contando a história Louis Braille, francês criador do método braille lá no século 19. Claro, em um primeiríssimo momento, sim, uma proposta profissional, mas trazendo algo um pouco complexo, posso dizer assim: contar a história de como foi criado um método para cegos lerem, usado no mundo todo, usando linguagem fácil, pois é dirigida ao público infantil e que principalmente tudo isso fique deliciosamente saboroso, legal para a molecadinha ler. Eu, um autor, ilustrador, roteirista de material adulto, às vezes adulto demais, daria conta disso?

A confiança mútua entre profissionais é fundamental, um bom princípio para tudo. A Ateliê apostou plenamente na possibilidade minha de criar esse projeto, e claro que essa liberdade abraçada à confiança, me deixou absolutamente livre para criar todo o projeto. Claro, nesse ponto o autor precisa compreender qual é a

proposta que a casa pretende com esse lançamento, quais são os objetivos que busca, além do público direcionado. Nasceu aí a turminha dos Aventureiros do Faz de Conta em sua primeiríssima aventura O tesouro que não se vê, subtítulo da obra.

            Maçã, Maria Carolina, Ulisses, Duga e Teko, formam esses aventureiros que contam ainda com a ajuda fundamental do Tio  Júpiter e sua casa voadora chamada Casemiro, uma inteligência artificial, responsável por criar as aventuras que a garotada irá viver e mais ainda, aprender. Nesse primeiro livro, movido por uma situação em que Ulisses irá precisar usar óculos,  eles participam de um jogo onde terão que usar suas espertezas, inteligências e outros sentidos, menos a visão que lhes foi bloqueada justamente para terem uma experiência de como é ser um cego, para encontrar um valioso tesouro. E no decorrer dessa aventura de caça ao tesouro vão conhecendo a histórias de Louis Braille, o referido criador do método braile, assim como de José Alvares de Azevedo, também cego e que trouxe o método para o Brasil no final do século 19. Tudo de uma maneira divertida, mas  informando.

A escritora cega Maria Helena Chenque  participou do projeto, assessorando justamente no ponto fundamental tanto do roteiro quanto da arte que foi me fazer entender, me aproximando o possível do universo dos cegos, suas dificuldades e facilidades. Peça fundamental para a narrativa e tempero da história.  Sem ela a história, o roteiro perderia sua verdade, sua autenticidade. Vale ainda contar que as crianças, os personagens, são todos iguais, embora de raças diferentes: negros, brancos, amarelos. Não há um líder nesse grupinho. Não há um mais inteligente: todos sabem e aprendem ao mesmo tempo, e claro, todos querem brincar também, afinal são crianças. Esse ponto, antes mesmo de pensar no enredo foi fundamental para mim, pois na igualdade e respeito, tudo é mais acessível e só abre-se espaço para o aprendizado. A hq contou com as cores da Thaynan Lana, talentosíssima artista, ilustradora e animadora com que eu já trabalhara antes em O vampiro.


A edição saiu no final de 2022 e creio ter suprido o que a Ateliê da Escrita  tinha com esse
projeto. E para mim, satisfação plena 
por acreditar que era possível de criar com toda honestidade que o assunto pedia.


            Quem se interessar é só entrar no site da editora .