11 de abril de 2023

AS TENTAÇÕES DE TODOS NÓS

Capa do novo livro

           Durante a primeira década dos anos dois mil, estava completamente absorvido na produção de Yeshuah que viria a ser publicado inicialmente em três volumes, sendo que os dois  primeiros foram lançados justamente no final dessa primeira década. Durante a produção dessa hq, roteiro e  desenhos, houve uma intensa pesquisa de minha parte para conhecer o máximo possível sobre a figura de Jesus e assim poder trabalhar dentro de um outro campo em seu enredo e foi justamente nessas imensas pilhas de livros que estudei que  deparei com a história... ou o mito, enfim, de Santo Antão, por acaso. Não me recordo agora mas também não importa tanto, em meio a livros sobre o cristianismo e sua história, estava lá em alguma citação provavelmente sobre o egípcio que durante sessenta anos de sua vida viveu no deserto em busca de um grau elevado de espiritualidade. Antão é tido como o primeiro asceta do cristianismo (segundo o dicionário: antes da instituição dos mosteiros, devoto dedicado a orações, privações e mortificações, sem ter pronunciado votos.) e nessa sua jornada mística e espiritual teve um confronto constante com Satanás que tinha o intuito de vencê-lo em seu objetivo e para isso o anjo caído fez uso de todas as armas possíveis, entre elas a luxúria, o sexo, os desejos da carne. Ao termino desse primeiro contato com a história do santo vi que em sua jornada e enfrentamento estava muita coisa que poderia representar, criar metáforas sobre buscas que sabia que existiam em meus quadrinhos, mesmo até nos mais descompromissados: o sagrado e o profano.

            Nesse mesmo período da produção de Yeshuah, paralelamente produzia a série erótica da personagem Tianinha, onde vale dizer  durou nove anos de publicação mensal dentro da revista masculina Total. A personagem loira que durante um certo período ganhou grande fama na internet, que então estava começando a criar vida muito longe do que é atualmente, fama essa que alavancou sua popularidade nas bancas e com os leitores, trazendo vez ou outra um número exponencial de vendas. Tianinha trazia muito do meu pensar sobre sexo: da relação entre pessoas, do que é permitido e principalmente nesse ato que à princípio praticado por duas pessoas, onde todos se tornam iguais. Mas, ao mesmo tempo também realizava uma profunda busca espiritual na hq e dentro de mim em Yeshuah. Foi nesse mesmo período que fiz meus primeiros trabalhos xamânicos, experimentando a expansão da consciência que foram fundamentais, divisores de água, para minha vida e para meu trabalho nos quadrinhos. 

         Com essas duas compensações na balança, de novo, o sagrado e o profano, vamos tratar assim, que quando tomei conhecimento da história de Antão, como disse, vi nele a metáfora a se trabalhar para entender o que é isso dentro do que crio... por que o sexo e o prazer? por que a busca e o entender Deus ou o que pode se entender como? e principalmente o equilíbrio da fé. A fé que antes de qualquer religião é um estado primordial para nossa existência terrena.

           

A tentação de Santo Antão por Salvador Rosa
          Claro que precisaria me aprofundar na história do santo, assim como vinha fazendo em Yeshuah. Li sua biografia "oficial", escrita por Santo Atanásio, arcebispo de Alexandria e contemporâneo de Antão, além do maravilhoso texto de Gustave Flaubert de livre inspiração As tentações de Santo Antão, esse texto por sinal, foi minha grande fonte inspiradora para compor o meu roteiro, além de estudar  quase toda iconografia, onde talvez Bosch tenha sido o artista que mais representou a história do santo e suas tentações no deserto.

            Ainda hoje sua história é muito forte, muito inspiradora: entre tantos simbolismos e interpretações possíveis é o homem no centro da famigerada disputa entre céu e inferno. A briga pela equação da balança e foi nesses pequenos e ao mesmo tempo grandes vislumbres de possibilidades que fui moldando a minha história. O meu Antão não poderia ser alicerçado em um personagem histórico, pois muitíssimo pouco se tem e a própria biografia de Santo Atanásio pouco fornece apesar de abranger muito de sua vida religiosa. Busquei então criar dentro dos pontos principais de sua história... ou mito, o homem, o ser humano que confronta seus erros, principalmente enganos perante Deus e perante o diabo, que aqui, mais do que um ser maligno, disposto a tirá-lo do caminho sagrado, quer traze-lo para verdadeira trilha divina que é simplesmente viver a vida, ou a vida à vida, como é dito em vários momentos da história.  Até onde o egoísmo e a cegueira em nome do que julgamos ser o absolutamente correto não prejudica quem está em nosso entorno e principalmente a quem nos ama? O que realmente é certo? Onde está Deus... ou nossa fé... em tudo isso? Por que a minha crença é a verdadeira e a sua não? E tantas outras questões que não saem de nosso DNA.

            É claro que o livro não traz resposta alguma, mas procurei não deixar dúvidas. Eu mesmo sigo dentro de minhas dualidades, que vale dizer, em momento algum quis excluir um desses lados.  Acredito que mais harmoniosos agora, quem sabe. Talvez e assim digo, talvez, busquei traduzir tudo a uma denominador comum, onde nesse estado não existe dualidade. O que seria? Mais do que não querer entregar o final da hq, o mais provável é quero deixar para vocês, pois é uma hq onde conto uma história, mais a conclusão sempre é do leitor. Para essa busca dentro do deserto pessoal onde conduzo o leitor desde a primeira página, a hq traz um ritmo lento, contemplativo com muitas, muitas páginas totalmente absorvidas por desertos, montanhas, céu, noite... natureza, que apenas observa o drama que nela se estabelece e irá acontecer. E o deserto pode ser o leitor: observador e estado interior a ser preenchido.

            As tentações de Santo Antão será lançado em breve pela editora Devir, velha parceira em outros trabalhos tão preciosos na minha carreira como Histórias do Clube da Esquina, Cadernos de Viagem e claro, Yeshuah. Na internet você vai encontrar muita coisa sobre Antão, vale conhecer, e entender como disse para trás o quanto ele nos representa em nossa essência humana, conflitante, sagrada, profana e por tudo isso, fazendo parte de Deus. 

          Mais uma vez uma história foi contada, escrita e desenhada e breve servida. E a vida de todos segue adiante.

         

O deserto: observador do confronto de Antão



 

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