Continuando o papo com vocês falando sobre a adaptação para os quadrinhos do texto clássico do escritor português Gil Vicente , "Auto da barca do inferno".
Conforme comentei na primeira parte desta postagem, em uma reunião que fiz na Editora Peirópolis com Luciana Tonelli, coordenadora da coleção "Clássicos em HQ" ao qual a adaptação da barca fará parte e Maurício Soares Filho, Consultor Literário dessa coleção, chegamos a definição que era impossível adaptar o auto, pois por se tratar de um texto todo escrito em versos, qualquer tipo de adaptação, mataria a obra original, algo, óbvio, que não se poderia fazer de maneira alguma.
Por não se tratar de um texto longo, era viável fazer essa transposição para os quadrinhos, sem perder a cadência de uma boa narrativa de hq e também manter a fidelidade ao texto original e maravilhoso de Gil Vicente.
Como disse, anteriormente, a casa editorial, a Peirópolis, deu total liberdade para criação desse trabalho, assim claro, como foi feito aos outros autores dessa coleção, no caso. Nessa mesma reunião com a Luciana e o Maurício Soares, alguns pontos sobre a questão visual dos personagens, também foram definidos. A sintonia das idéias entre nós foi tanta que, pouquíssima coisa, pouca mesmo, foi mexida. O Maurício, que além de consultor literáro da coleção, é bacharel em interpretação tetral pela Unicamp, especialista em direção teatral pela Middlesex University de Londres, autor de literatura pelo Sistema Anglo de Ensino , onde também é professor, dá aulas regularmente no Colégio São Luís e é apresentador do Programa "Fala fera" da TV União em São João da Boa Vista, entre muitas outras coisas em seu currículo, entendeu perfeitamente qual era minha proposta para essa quadrinização na questão visual dos personagens e nosso papo foi fundamental para fechar o assunto. Em pequenos detalhes do texto do Gil Vicente, sua explicação definiu alguns personagens como o protagonista, o diabo, ou o antagonista , o anjo.
O personagem do diabo nesse texto e em especial nessa adaptação é longe da visão aterrorizante de uma história de terror ou mesmo dentro dos dogmas católicos, na verdade, como o recepcionista e condutor das pessoas que com ele embarcarão na derradeira viagem ao inferno, é quase cômico, ou satírico, termo melhor, pois sabe que todos irão consigo, mesmo que inicialmente, essas almas acreditem que para o céu irão. O diabo então, deixa eles, durante alguns minutos, acreditarem nisso, armadilhas do ego, para que depois da ilusão desfeita pelo condutor da barca do céu, o anjo, voltem conformados com a situação final para então, à barca do inferno irem. Claro, ele se diverte com toda essa situação.
As figuras que por essa cais passam, o fidalgo, a alcoviteira e cafetina, o agiota, o padre, e mais alguns outros são, reflexos de uma sociedade da época em que Gil Vicente escreveu e que infelizmente ainda persistem hoje, com força. Nada mudou. O texto de Gil é direto e carregado de críticas às vezes sutis e às vezes não tanto. A figura do diabo então, brinca com tudo isso, pois ele conhece a alma de cada um, merecedores absolutos de seus lugares no inferno.
Não preciso dizer o quanto foi saboroso trabalhar com esse personagem, com esse texto. Algo como se fosse uma parceria mesmo, algo autoral. E uma presunção, me desculpem, Gil Vicente-Laudo, mas assim foi.
Outros personagens, como o anjo, baseei-me no anjo do clássico filme do expressionismo alemão "Fausto". Acho que está tudo ali nesse filme e como disse, fui lá beber de inspiração também.
Outros personagens, como o Parvo, o bobo, veio de alguns quadros de Hieronymus Bosch, onde se vê muitas figuras dentro de cenários fantásticos que esse artista holandês criou, mostrando muitas pessoas com expressões entre a loucura e a razão e é lá que vi o meu Parvo desse quadrinho.
Claro, toda essa paixão pelo texto de Gil Vicente, não veio somente agora com a proposta dessa adaptação, nada disso, é história muito mais antiga. Minha esposa, Romana Flora, atriz, durante muitos anos trabalhou numa das montagens mais conhecidas desse texto, feita pelo Grupo Dragão 7 e lá sim, foi quando conheci esse texto e fui aos poucos saboreando esse jogo de idéias. Aliás, foi minha esposa que muito me ajudou também no melhor entendimento da obra e do texto, literalmente, pois é escrito num português antigo, por vezes difícil de entender.
Na próxima postagem, a última sobre essa adaptação, falo da idéia em si da obra em quadrinhos e de um "apêndice" feito para revista "Pessoa", a hq "Gil Vicente" que servirá como um antepasto para a edição.
2 comentários:
Tá ficando bom!!!
Como Professor de Literatura e apreciador de Gil Vicente, mal posso esperar!
Dê uma olhada, se possível, nesse meu trabalho com quadrinhos também: http://desenhistaeroteirista.blogspot.com/
Abraço!
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