Fotos Manoel Souza |
Em meados dos anos dois mil, durante uma das entregas do prêmio anual Ângelo Agostini, que premeia os melhores de cada ano anterior dos quadrinhos nacionais, estive presente com minha esposa para, além de assistir o evento, celebrar alguns amigos laureados. Minha esposa, embora ligada ao mundo artístico, trabalhava então como atriz de teatro, conhecia muito pouco do universo das Histórias em Quadrinhos e naquele momento, muito menos do universo da produção nacional, mas estava entusiasmada pelo evento em si e principalmente pelo fato do teatro do Senac do bairro Lapa aqui em São Paulo, localidade onde naquele período algumas das premiações do Ângelo Agostini foram realizadas, encontrava-se lotado. Público interessado nas premiações, fãs, amigos e parentes dos artistas em destaque.
Durante um determinado momento da cerimônia, um artista da velha guarda recebeu a homenagem de Mestre do Quadrinho Nacional pela vida dedicada à Nona Arte e pelo conjunto de sua obra, e foi então que um determinado ilustrador (por razões óbvias não direi o nome) subiu ao palco para receber o prêmio. Com uma mão fortemente enfiada no bolso e outra segurando o troféu, andava para todo o lado do palco, provavelmente nervoso e ao mesmo tempo tímido pelo momento, discursando dos infindáveis problemas da área, da dificuldade de se produzir e vender quadrinhos no país, da falta de dinheiro, do não reconhecimento que vem da mídia, do público e às vezes da própria classe e uma série de outras lástimas, que passado todos esses anos não me recordo. Daquele período para hoje a situação deu uma razoável melhorada, diga-se de passagem, inclusive com um Big Bang fabuloso de novos talentos de todos os gêneros, escrevendo, desenhando e publicando com uma qualidade estrondosa. Mas voltando ao palco do Senac, a fala do então Mestre, estava carregada de razão e sim é importante levar ao público a dificuldade de se produzir essa arte. Não há dúvida. Porém, estávamos em um evento de celebração onde, apesar de tudo, estamos aqui, fazendo de um jeito ou de outro. A premiação em si, era e ainda é por si só um ato de fé, de resistência e isso é o mais importante. Foi durante esse desamparado discurso que minha esposa virou-se para mim e perguntou: “Laudo, mas é tão ruim assim mesmo?”. Não me recordo o que lhe respondi e passado todos esses anos nem importa mais.
Aquele momento ficou durante um período na minha cabeça. Embora compreendendo perfeitamente a cabeça do meu amigo “mestre” laureado, achava que o canto deveria ser de vitória, de crédito, de ir adiante apesar de tudo. Era preciso promover algo totalmente anárquico daquela tristeza e no future que habita o coração de muitos artistas. Afinal, criamos, geramos ideias, mundos, personagens, geramos vida, mesmo que no papel. Fazemos arte e o principal é contrariar mesmo aquilo que é fato e regra a favor e contra nós. Foi nesse sentimento que pensei, caso ganhasse algum prêmio nos próximos anos, promoveria algo no durante o evento de entrega dos troféus, algo que mesmo de um modo simples e pequeno, mexesse pelo menos com a entrega do prêmio onde, mesmo laureando artistas e obras, às vezes a melancolia perdurava em alguns casos específicos, como o citado.
Entramos em 2009, um ano depois dos acontecimentos, por uma brincadeira da vida, fui premiado na categoria Melhor Desenhista Nacional e claro, toda aquela intenção inspirada pelo mestre, teria que ser parida, vir à luz. Como se diz, vamos bagunçar o coreto!
A série da minha personagem Tianinha acabara de entrar em seu nono ano de publicação ininterrupta dentro da revista Sexy Total. O fotolog (sim é coisa antiga, crianças!) da personagem que vinha mantendo, tinha uma média de duzentas a trezentas mil visualizações por mês. Um sucesso! Uns três anos antes eu havia dado uma entrevista para o programa do Otávio Mesquita no SBT, falando sobre a personagem e na ocasião, foi pensado entre eu e a produção levarmos uma garota loira se fazendo passar de Tianinha, enquanto acontecia a entrevista que seria
feita dentro de um motel. Nada mais propício. A lembrança disso trouxe-me a inspiração necessária: iria levar uma garota linda, sexy e loira, a própria Tianinha para sair em meio ao público para subir ao palco e me entregar o prêmio. A ideia foi levada até Worney Souza, um dos organizadores do prêmio que adorou a ideia e assim aconteceu na data de 14 de Fevereiro de 2009. O público presente que lotava o teatro do Senac, foi surpreendido com a atuação de uma amiga, Arielle, atriz, que cobria todos os requisitos que a personagem pedia, se fazendo passar pela própria Tianinha. Interagindo com os presentes, saindo de algumas situações e controlando todo o ambiente que acredito, a própria se real fosse (mas será que ela não é real mesmo??), não teria feito assim. E para o meu espanto, os presentes julgavam eu mesmo desconhecer a armação toda. Sim, nota dez para a ação!!
Mesmo tendo engendrado toda essa deliciosa situação, foi algo inesquecível e saboroso ganhar um prêmio entregue pelas mãos de sua própria criação, principalmente sendo ela a própria loirona.
Por outro lado, mais uma vez reitero que entendo a dor, o desalento, a decepção de muitos amigos e conhecidos contemporâneos sobre o árduo caminho de se fazer quadrinhos, mesmo hoje com um cenário melhor. Ela é pertinente. Mas, podemos ser maiores que isso, podemos enxergar a possibilidade. O tempo vem mostrando que sim. Os novos autores que vem surgindo pela estrada dizem que sim.E é nisso que devemos apostar.
Curiosamente, alguns poucos meses depois a série da Tianinha foi encerrada pela editora. Fechava-se a era das revistas masculinas, as revistas de mulher pelada, ao qual a série de hqs da loira pertenceu durante nove anos. Encerrei ali minha relação com a personagem (mesmo tentando trazê-la de volta numa série independente em 2017 que não aconteceu) e qual melhor forma de nos despedirmos, criador e criatura, que trazendo essa parceria para interagirmos com o público?